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"Você sabe o que eu quero dizer, não tá escrito nos outdoors. Por mais que a gente grite, o silêncio é sempre maior" (Engenheiros do Hawaii)

domingo, 23 de setembro de 2007

Cantores de Ônibus


Toda vez que eu viajo de ônibus, vem junto uma criança cantando. Da última vez, uma menininha entoava “Coelhinho fofo”. A plenos pulmões. Acho que tenho um atrativo natural pra essas coisas. Mas isso não me incomoda, não. Até me interessei em saber da vida de um deles...

O menino franzino de quem ora falo, João de Barro Duro, berrava, quando o conheci, um melodiazinha triste, sucesso na rádio de sua cidade. Incomodava alguns passageiros que queriam dormir, óbvio – que povo insensível! Mas despertou o interesse de um simpático homem, o bom senhor Eustáquio.

Ele logo tratou de fazer amizade com a mãe do garoto, dona Juventina, dizendo que o garoto levava jeito pra coisa. Ela, naturalmente, encheu-se de orgulho, encantada em perceber o potencial do filho querido. Logo, o gentil senhor propôs que ela levasse João à tevê, como novo talento mirim. Dito e feito. O sucesso da primeira apresentação dele rendeu-lhes lugar cativo no programa líder de audiência e um contrato com uma grande gravadora.

O amável senhor Eustáquio, tranqüilamente, ficou com a maior porcentagem dos lucros do contrato, o que já era de se esperar. No primeiro CD, uma balada de refrão pegajoso vendeu incontáveis cópias, sendo a mais executada no mês de lançamento. E tome shows, entrevistas, programas com o prodígio. Era sucesso, muito sucesso, chegando por todos os poros.

Com o tempo, a expectativa por um segundo álbum crescia. E o jovem não decepcionou. Um trabalho para consagrar o novo fenômeno da música nacional. Uma produção mais autoral, mais introspectiva, revelando o momento maduro da carreira dele. Entre mais apresentações, programas e entrevistas, foram surgindo multidões de fãs, principalmente mulheres, com boas e más intenções e um só objetivo: ter um caso amoroso com o ídolo das massas.

O prudente Eustáquio alertou João para esse risco, mas ele fez ouvidos moucos. Em pouco tempo, o cantor era flagrado em local público aos beijos com uma fã, que logo engravidou e disse ser dele o filho. Eu bem alertei, disse o empresário do rapaz. Dessa frase seguiu-se uma briga feroz, em que o astro acabou por contestar, entre outras coisas, a desigualdade do contrato. O processo na Justiça, as discussões alternadas em programas rivais nas tardes de sábado e a posterior separação punham fim a uma era.

João caminhava agora a passos cautelosos. Com um novo empresário, não encontrava mais inspiração própria em si, nem quem a fabricasse para ele. Para não cair no ostracismo, a saída foi fazer um álbum com regravações de grandes sucessos, inclusive a musiquinha que ele cantava quando o vi naquele ônibus. A cada apresentação, ele repetia a história de sua vida, arrancando lágrimas dos espectadores. Na televisão, quadros com ele, ao estilo “Tudo Sobre Minha Vida”, conseguiam bons pontos de audiência. Um escritor de renome, inclusive, propôs-se a acompanhar de perto a vida de João de Barro Duro para publicar um livro sobre ele. A trajetória do menino humilde que alcançou o estrelato seria enfim eternizada.

Embora fosse mania nacional, as vendas do novo álbum estavam baixas para os padrões. Resolveu então, para compensar, que seria gravado o primeiro DVD ao vivo, com mais umas canções que havia composto nesse meio-tempo. Sucesso de público e crítica, o show deu um sopro de renovação à carreira dele. A vida pessoal, contudo, declinava a passos largos.

A tiete grávida entrou na Justiça pedindo pensão alta demais para a renda mensal de João. Ele teve então que se desdobrar para pagar, e baixou o preço dos shows para ganhar na quantidade. O novo empresário desistira de acompanhar alguém tão inconstante, e logo abandonou o barco. A biografia vendia bem, obrigado, mais por causa da fama do autor do que pela atração que era o garoto de Barro Duro, e este não recebia um vintém por ter a vida devassada. Os programas da tevê não o chamavam mais para nada, mas os shows de talentos vez por outra executavam músicas do rapaz em outras vozes.

O quarto álbum mostrava a degradação a que João havia chegado. Músicas difíceis e de gosto duvidoso permeavam a nova empreitada, lançada por um selo alternativo devido à quebra de contrato por parte de sua gravadora anterior. Apresentava-se não mais em grandes palcos, mas em barzinhos mal-freqüentados, e vez por outra era expulso. Ia a programas de emissoras do interior, nos horários menos assistidos, tendo que pagar por isso. Uma das raras inserções em rede nacional foi num daqueles quadros tipo “E por falar em saudade, onde anda você?” das revistas eletrônicas do começo da tarde. A imagem já havia sido por demais explorada. Decidiu pôr um fim a isso. Pôs-se a viajar pelo mundo e conhecer outras paradas, e apagar a impressão de artista decadente.

Muitos anos depois, resolveu voltar ao mercado da música. Apresentou a idéia de lançar um novo álbum, com a coletânea da carreira. O Acústico lançado trouxe de volta ao sucesso o ícone de toda uma geração passada, contando com participações de novos e velhos talentos, estes também precisando de reafirmação. O retorno aos programas do povo fez aparecer a imagem de um artista mais experimentado, que trazia os estilos e descobertas acumulados ao longo de toda uma vida. Nos talk-shows, era tratado com respeito pelos entrevistadores, sempre ávidos por desconcertar uma pessoa. Protagonizava espetáculos memoráveis, sendo de novo aclamado como sucesso. A vida é cheia de altos e baixos, e isso é um lugar comuníssimo. Mas João, o bom João de Barro Duro, soube como dar a volta por cima, e agora é aguardar pra ver o que ainda há por vir.

Detalhes:

Dona Juventina, mãe de João, continuou, por opção, a morar no interior até o fim da vida.

Seu Eustáquio hoje vende raspadinha no mercado central.

A grande gravadora fechou.

O novo empresário, já não tão novo, agencia uma boy-band apontada como “a renovação do rock mundial”.

O selo alternativo hoje é grande gravadora.

A vida de João vai virar filme.

A vida dele não está tão bem.

Quem ganha com isso sou eu, biógrafo não-autorizado.


Um contozim pra começar a semana, e nada mais.

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